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É no lavando louça que a gente faz psicanálise...


Hoje irei apresentar um texto com fundos de testemunho e imagens de uma escuta. Escuta essa que percorre trilhas analíticas, escuta advertida, escuta da divisão que me constituí, escuta dos meus atos falhos e de minha castração.

E me pergunto, será possível escutar de outra maneira que não essa? Será possível estar na função de psicanalista para além do consultório? Como que essa escuta atravessa as paredes?


Bem, trabalho em uma instituição de acolhimento, aquele antigo abrigo, que tinha como característica ser uma instituição total, respaldada na massificação dos corpos e uma lógica de exclusão social. Com o estatuto da criança e do adolescente isso mudou, virou um serviço que compõe um um dos serviços da proteção social especial da alta complexidade, que é caracterizado por possuir uma estrutura pensada para reproduzir as características de um lar; possuem regras e rotinas próprias; um público diverso no que tange à idade e sexo; com atividades realizadas fora da casa lar (escola, trabalho, esportes etc.); e uma equipe designada para cada papel na rotina da casa. Composta por cuidadoras que são responsáveis pelo cuidado cotidiano das crianças, uma cozinheira, equipe administrativa e a equipe técnica que é constituída por pedagoga, assistente social e psicóloga.


As crianças e adolescentes que ali chegam estão em um momento de extrema vulnerabilidade, foram retirados de suas famílias para ali ficarem por um breve período de tempo, às vezes não tão breve assim. Minha atuação é de prestar acolhimento tanto para as crianças que chegam, tanto para aquelas que estão na função de cuidadora dessas crianças. Para entrar precisei do título de psicóloga mas o uso para exercer uma escuta psicanalítica. 


Para trabalharmos juntos, irei trazer um recorte de uma escuta na casa: Escuto berros, gritos, gritos sofridos, berros estridentes que fazem barulho e mexem os órgãos. Vou caminhando em direção ao berro, cada vez mais alto e mais sofrido. Chego no quarto me deparo com a seguinte cena: uma cuidadora sentada na cama colocando seu braço apoiado na parede de maneira que não permite uma criança de 3 anos sair dali, ele começa a bater no braço dela. Me abaixo faço um carinho no braço e gentilmente a olho e faço que sim com a cabeça, ela saí e fico ali com o berro. O berro em forma de sofrimento se vira para a quina da parede, ficando de costas para mim, continua a berrar por volta de 20 minutos, vejo que ao lado dele tem um bichinho, pego e finjo ser o bicho para me aproximar dele, ele pega o bicho  bate repetidas vezes e o joga para fora da cama; eu pego o bicho e o aproximo dele, ele pega bate repetidas vezes e o atira para fora da cama. Novamente eu pego o bicho e o aproximo dele, ele o bate e joga para fora da cama, essa situação ocorreu repetidas vezes; até um momento em que ele pega a coberta e se esconde, e eu faço a seguinte pergunta: "Onde está o João?" E ele responde: "eu não tô em nenhum lugar", até que um pé apareceu fora da coberta e eu disse "aqui está o pé do João" e o toquei, ele foi mostrando sua mão, seu outro pé, e outras partes do corpo até aparecer seu rosto. Disse "Tia, vira!" Me virei de costas e ele se cobriu novamente, perguntei onde está o João? e ele respondeu "eu não tô em nenhum lugar", e aos poucos foi mostrando partes do corpo e fui o tocando novamente. Repetimos diversas vezes esse jogo, até um momento em que ao perguntar onde ele estava, ele embaixo da coberta me diz "eu to com muita saudade do papai e da mamãe, tô muito tempo aqui nessa casa." Após essa fala, brincamos mais um pouco de se esconder e aparecer, ele dizendo que não estava em lugar algum e em um momento se levantou e disse "tô com fome, vou comer".


Naquele momento estive além de uma disponibilidade afetiva para aquele sujeito, uma escuta analítica que possibilitou com que uma das verdades do sujeito viessem à tona. A posição do analista nesses contextos não é o de portador de uma verdade, por mais que ele seja convocado e demandado para ocupar esse lugar, ele não o ocupa, porque ele sabe que não sabe sobre o sujeito.


Agora, como estando em um discurso Institucional que é contextualizado de que o profissional psi irá capacitar -com um saber- aquelas que estão ocupando o lugar de cuidadora? Como irei circular o não saber? Como irei capacitar as cuidadoras para além de exercerem os cuidados diários terem uma disponibilidade afetiva para cada criança?


Aí, enquanto psicanalista saio do lugar de resposta de como cada uma irá manejar com cada criança para estar em um lugar que viabilize com que cada uma crie, fabrique e invente manejos possíveis para lidar em contexto de sofrimento apresentado por cada criança. E a escuta psicanalítica estará sem as respostas, estará nas perguntas e às vezes na função de contornar o incontornável de algumas situações; não em uma tentativa falha de resolução ou fechamento, mas dar um respaldo possível para que a criação possa surgir, para um questionamento daquela conduta e/ou simplesmente um ‘eu to aqui’, como possibilidade do eu desintegrado da cuidadora se integrar novamente para seguir dando suporte para o sofrimento da criança.


A circulação do analista nesses contextos permite algumas traduções, como por exemplo uma situação trazida por uma estagiária: em que uma criança em seu primeiro dia de acolhimento deixou a sua boneca nua e ao a estagiária dizer “vamos vesti-la” a criança diz “ela não tem roupa”, ao lado de uma gaveta cheia de roupas de bonecas. A escuta se dá além, ela não tem roupa de significante que dê conta de vesti-la nesse momento traumático que está vivenciando. E é aí que entro, ampliando a escuta daqueles que estão em outras funções na casa, para além daquilo que é dito. E esse momento se dá no lavar de uma louça. no varrer de um chão, enchendo um copo da água…


Porque nós circulamos desde um lugar não todo, não vamos com A verdade, vamos escutar e trabalhar com isso que nos é apresentado: os não ditos e semi-ditos, possibilitando com que aqueles que vão sendo escutados em suas singularidades, não se sintam sozinhos. E a partir da psicanálise em extensão a levo para intenção em uma análise de controle dessa escuta. 


O andar da psicanálise nesse contexto também se dá no ‘agora não’, em colocar o sujeito com a castração, de que agora não, colocar as trabalhadoras a pensar, a esperar, a perceber de que aquilo que em primeiro momento é urgente passa a ser outra coisa, uma coisa possível de conviver: com a pergunta.




Texto apresentado em 2022, no Tema Institucional da Maiêutica Florianópolis Instituição Psicanalítica.


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