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Psicanálise em situações de exclusão e vulnerabilidade social - Miriam Debieux

  • thyenelivramento
  • 25 de mar.
  • 16 min de leitura

 

Após assistir uma aula no youtube da Miriam Debieux sobre Psicanálise em situações de exclusão e vulnerabilidade social, fiquei impactada com as amarrações que ela foi fazendo da sua prática clínica e escrita dos caminhos por onde percorreu. No momento, estou lendo a primeira publicação dela, “Histórias que não se contam - o não dito e psicanálise com crianças e adolescente”, fruto de sua dissertação de doutorado (1995) com as flores do seu percurso clínico, que se deu no enlace com os meninos que na época estavam na febem.

Esse livro tem uma densidade teórica e um copia e cola do “Lacan disse” e “Freud disse”, típicos dessa geração de psicanalistas que precisavam ancorar a bandeira da psicanalise no território brasileiro. Necessário e prudente dar nome ao chão para após quase trinta anos criar sua clínica com outros arranjos, porém com a mesma bandeira: psicanálise. Esse chão deu frutos e um deles foi essa apresentação que tentarei organizar as ideias ali apresentadas, totalmente um copia e cola, mas dessa vez pautada na: “Miriam disse”. Vai brasilsilsilsil.

 

Lá vai:

Querida Miriam,

das vidas secas deixou a psicanálise brasileira molhada de vida.

 

tá, voltei. Tentarei ao máximo não me perder nas palavras para tentar a tal dita e impossível: comunicação.


Miriam em sua trajetória criou o nome “vidas secas”, das quais designou para aqueles em que são excluídos da partilha dos bens materiais e culturais de uma sociedade. Que a cada ano estão lidando com recursos cada vez mais precários para sobrevivência, e há uma indagação: de que forma esses sujeitos bancam a sua posição e a sua forma de viver?

Os psicanalistas que se dispõe a escuta-los vão aprender muito mais sobre as formas de resistência do que propriamente aplicar suas técnicas daquilo que já sabem. Precisarão necessariamente realizar um longo caminho que inclui a queda de um ideal de clínica, intitulada a clínica do sintoma (característica do consultório privado) para a clínica do traumático.

A autora localiza resistência como sendo as contra estratégias que o sujeito constrói para driblar as tentativas de dessubjetivação e destituição do lugar de sujeito, onde em diversas artimanhas os destituem da sua fala e da sua narrativa.


Em sua exposição, recorda de três falas que fizeram algumas questões em sua clínica, sendo elas:

 

“A senhora tem medo de mim? eu sou um menino da Febem”

 

  • A questão aqui levantada é a diferença de classe. Situemos a cena: uma senhora do bairro jardins senta para conversar com o outro que está em uma situação periférica, das margens. Aqui, é uma conversa que se dá na relação ideológica, do discurso corrente, e dentro dessa lógica não há escuta possível.


É necessário um trabalho preliminar, que inclui a resistência do analista para reverter a lógica ideológica da qual ele mesmo está inserido. (e como se faz isso? sentando para tomar um café? lavando louça? trabalhando junto? Será preciso, ou isso está no discurso?…).

Não basta ter uma proposta de escuta, é preciso que haja um trabalho de construir uma relação (nessa relação, o analista não está morto) para que a escuta opere.

Isso, é completamente diferente de quando alguém supõe que o outro está disponível para lhe dar algum tipo de suporte (seja de saber ou atenção) e demande uma ajuda para o seu sofrimento. Esse não é o caso de pessoas que vivem cotidianamente situações de violência, em que o outro está lá para usufruir de seu serviço e explorar suas habilidades.

Nessas situações em que o analista se depara com sua resistência para reverter a lógica ideológica, é comum aparecer atuações do analista através dos diagnósticos precoces. O que é um equivoco pelo simples fato de: se não houve uma escuta, não há diagnóstico possível. Sendo esses diagnósticos aos sujeitos que ali estão como: pobreza intelectual, psíquica… recolocando a ideologia, os colocando como alguém que não tem o que dizer, alguém que não tem a possibilidade de uma elaboração do seu modo de viver.

Vimos desse modo, que não é automático que a escuta opere, não só porque o outro tem experiências cotidianas de vida, das quais não espera muita coisa do outro e por isso, não endereça uma demanda, como pela dificuldade que o analista tem de escutar o outro como sujeito. Sendo que no ponto de vista social, o analista se encontra na posição de domínio, ou seja, a diferença de poder está presente nessa relação e que se ela não for contornada não há trabalho possível na psicanálise. E esse trabalho supõe muito mais um trabalho do analista, com o seu olhar sob o outro, para apostar no sujeito que está ali.

 

“Que história você quer que eu conte?”

 

  • Em outro fragmento clínico, a autora relembra a pergunta que um garoto que também estava na Febem realizou ao chegar no atendimento com ela. Essa pergunta a levou para ao que estava ao redor desse sujeito, das diferentes versões que ele já foi demandado a falar de sua história, como sendo uma justificativa dele pertencer ou não determinado lugar.

  • O emudecimento que a gente vê, são fruto desse lugar (lugar de dessubjetivação), as tentativas de pronunciar algum tipo de discurso, do ponto de vista dessas pessoas, são sistematicamente desqualificadas pelo discurso dominante, que já sabem sobre ele e o seu destino, já sabem que ele é um delinquente, já sabem que ele é um traficante e que no máximo é uma vítima, que também é um discurso que para a psicanálise é um discurso que não serve. Ou seja, aquilo que ele diz, não tem efeito esperado, sendo esse efeito a produção de alguma ressonância no outro, uma expetativa de que aquele discurso sobre ele produza alguma outra forma de estar sendo escutado. Essa condição de estar sob desamparo discursivo.

Aqui a autora trás uma noção de desenvolver uma clínica a partir dos discursos do qual lança um conceito de que certos sujeitos se encontram em um desamparo discursivo, além do desamparo social, cultural…



Desamparo discursivo



Nesse ponto a autora da um salto, no sentido de conceituação. De modo que se queixa quando diz: se eu digo que não há escola, o campo social diz: claro que tem escola; se eu digo que não tem justiça, o campo social diz: claro que tem justiça; Se não sairmos dessa bolha, não temos a menor ideia do que se passa com o outro.

Pensar pela lógica do desamparo discursivo, que seria propor não uma falta de recursos do sujeito, mas sim uma falta de recursos de uma escuta que possa considerar essa condição, que é a face sociopolítica do sofrimento.

A psicanálise fez todo um movimento de pensar o sofrimento neurótico. Freud trabalhou as neuroses de guerra, os impactos traumáticos das situações em que o sofrimento vem de fora do sujeito. No entanto, toda a clínica psicanalítica foi centrada no sujeito que, tendo vivido um sofrimento, constrói um sintoma a partir dele — um sintoma sedimentado sob uma fantasia. A fantasia (seria fantasma?), por sua vez, é uma teoria sobre como ele pensa sua relação com o objeto e com o outro.

O trabalho de Freud vai no sentido não tanto da elucidação do sintoma, mas do atravessamento do sintoma até a fantasia, que, por sua vez, é uma forma de sustentar a angústia. Assim, para chegar ao sintoma, há um processo psíquico bastante elaborado em relação à angústia, que supõe que o sofrimento vivido pelo sujeito não é algo natural, mas algo excessivo, um preço a mais que ele tem que pagar por pertencer à civilização. Essa suposição depende de um mínimo de organização narcísica, de sustentação narcísica. Não estamos falando aqui de um excesso narcísico, mas do narcisismo enquanto constituição do próprio eu.

Dessa forma, discursos mortificantes e humilhantes, que o sujeito sistematicamente vivencia, afetam justamente essa organização narcísica, desarticulando sua capacidade de sustentar um valor para si mesmo. Isso faz com que o sofrimento seja visto como algo natural, inerente à vida, e que a ele só resta se resignar.

Há uma estratégia política de silenciar o sujeito. Interessa ao poder capturar o sujeito no seu gozo e no seu desejo, de tal forma que ele fique silenciado. As artimanhas do poder operam através da naturalização do sofrimento e do desmonte das organizações narcísicas, criando um enredamento do sujeito nas malhas do poder. Isso faz com que ele acabe identificado com o lugar que o discurso lhe impõe — o lugar de resto, seja como resto social, como "lixo" na favela, seja como "lama", na qual o sujeito se vê elameado.


De uma perspectiva de escuta, é preciso não tomar o sujeito apenas a partir desse lugar. Essa separação é necessária. Por mais que ele esteja identificado com esse lugar no discurso, não é por meio dessa identificação que ele pode responder. Ele precisa realizar um movimento de separação desse lugar, um deslocamento que lhe permita conquistar um lugar de fala, um espaço onde possa instituir um outro discurso. E isso não se faz sozinho.


Não se faz apenas em uma relação analítica, de um a um. Quando pretendemos incidir sobre um certo discurso social para dar lugar ao outro — seja como sujeito, seja como partícipe dos bens culturais — é preciso que essa virada no discurso seja coletiva. É necessário pensar estratégias coletivas de elaboração do traumático.


Há uma outra cena do sofrimento sociopolítico: a cena política. Quando Lacan diz que "o inconsciente é o político", abre-se uma possibilidade de pensar nas tramas políticas que estão invisibilizadas. Assim, não se trata apenas do sofrimento individual do sujeito, mas da trama política que permanece oculta, impedindo o sujeito de se localizar dentro do jogo de poder no qual ele está colocado.

 


"Olha, senhora, eu não posso pensar assim como a senhora quer, porque lá onde eu vivo, eu não sobrevivo se eu pensar dessa forma."


  • Será que a escuta pode fragilizar alguém que vive em situações de perigo? Ao invés de dar condições para o sujeito se recolocar em uma posição de sujeito, que lhe dê instrumentos e bagagem para lidar com o que está acontecendo?



Trajetória: Saída do consultório particular, do um a um, para o território.



Em um primeiro momento, nós trabalhamos com a dimensão do luto. Há uma perda, um luto que precisa ser elaborado. Então, iremos trabalhar na direção da elaboração do luto. Nessa dimensão, trabalhamos as precondições para o luto, muito baseados nas reflexões de Lacan sobre Hamlet, onde ele trabalha a ideia de que o registro, tanto do nascimento quanto da morte, não é um registro que possa ser feito individualmente, mas sim um processo coletivo.

Para elaborar a presença de uma nova pessoa ou a ausência de um sujeito humano, é preciso que ocorra toda uma reelaboração do campo simbólico. Por isso, os rituais e os registros de óbito têm uma função coletiva: dizer que algo se perdeu ali é necessário para que cada um possa, a partir disso, amarrar seu próprio processo singular de elaboração desse luto. As mortes não registradas têm uma dupla intenção: por um lado, não responder pelo crime; por outro, lançar o outro na melancolia, impedindo-o de ter uma palavra e uma posição política frente ao que aconteceu.

Como propiciar alguns movimentos nessa direção? Nesse sentido, a ida ao território é um deslocamento, uma forma de superar a posição do psicanalista deslocado, que não tem a menor ideia do lugar onde está. Esse deslocamento implica ir ao território do outro, um território geográfico e simbólico.

Milton Santos fala do território como algo muito mais do que um espaço objetivo. O território é também cultural e libidinal, onde pulsões e formas de existência podem não ser reconhecidas, mas estão lá. Nesse sentido, o estrangeiro é o psicanalista. Seja tratando com refugiados, seja indo ao território do outro, esse deslocamento é uma estratégia de intervenção, que difere da tática do consultório. É uma tática que aponta para um outro lugar do psicanalista e para uma outra direção da escuta.

No texto de Bauman sobre a diferença entre viajante e turista, percebemos que, nesse trabalho, não queremos ser turistas que apenas espiam ou matam a curiosidade, assistindo à degradação do outro como um espetáculo. O modelo do viajante, como trabalhado por Walter Benjamin e Georg Simmel, parte da saga de Ulisses, onde o sujeito vive no outro território e recolhe experiências desse lugar. No entanto, há uma inversão nesse processo: quem está se beneficiando?

Se essas pessoas estão vivendo lá, é porque construíram um modo de sobreviver nas ruas, na guerra, fugindo dessas situações e muitas vezes deixando para trás aqueles que lhes eram mais queridos.

Nesse sentido, a elaboração desses lutos levará uma vida inteira. Se a elaboração do luto está em um horizonte, ela não é o objetivo mais imediato do trabalho. A construção de uma narrativa e de um endereçamento é, muitas vezes, um processo em si, não algo dado. Pensar que há ali uma condição traumática em andamento possibilita desenvolver um trabalho que ajude o sujeito a se apropriar do processo que já realizou para sobreviver àquelas circunstâncias e, num detalhe singular, criar uma referência de trabalho para o futuro.

Exemplo: um menino que viu sua casa ser incendiada com sua família dentro. Ele e o irmão fugiram para lados opostos e, ao chegar a um abrigo, ele está torturado por tudo que viveu. Nesse momento, sua única preocupação é encontrar seu irmão. Isso lhe dá um ponto de partida para construir uma nova trajetória.

Nesse sentido, trabalhamos muito mais no processo de esquecer do que no de lembrar. O que é o recalque? Esquecer e esquecer que esqueceu. O recalcado é um duplo esquecimento. O traumático é a impossibilidade de esquecer, a impossibilidade de não poder não recordar. Aquilo fica presente o tempo todo, sem que o sujeito possa se movimentar dentro desse processo.


Nosso trabalho busca deslocar o sujeito desse lugar, partindo de sua própria história para que ele possa encontrar um ponto a partir do qual construir uma nova trajetória.

As saídas são singulares, pois o processo de elaboração não tem um fim definitivo. Exilados da Argentina há 40 anos ainda vivem esse processo. Assim, a intervenção possível é, muitas vezes, recuperar um lugar de sujeito e de desejo, encontrando esse ponto de partida para dar andamento a um processo.



Faz uma crítica à ideia de traumático. Quando falamos de traumático, não nos referimos ao transtorno de estresse pós-traumático. Muito pelo contrário, essa dimensão do acontecimento traumático, em que o sujeito não consegue responder a esse evento e generaliza o sofrimento, coloca a força no acontecimento e não no sujeito, despolitizando-o. Ou seja, o acontecimento está dado, e o problema passa a ser o sujeito. Nos processos em que o sujeito tome força, a dimensão do acontecimento que eu chamo de “violento” e não de “traumático” é o que está em jogo.

Como acontecimento violento, ele se apresenta de uma verdade que se une ao saber, onde o sujeito não tem nenhuma possibilidade de dizer o que, naquele sofrimento, lhe é particular. Ele tem uma consistência de uma verdade que não precisa de um sujeito, ele é o acontecimento traumático.

Aqui, propomos outra leitura do conceito de traumático em psicanálise. Esse tipo de traumático como um fato que gera sofrimento e depois uma neurose pertence à primeira teoria de Freud, antes dele se tornar psicanalista. Posteriormente, Freud reformula essa concepção e passa a entender o traumático a partir do desamparo fundamental que constitui o sujeito. Um sujeito que não tem uma essência e que é habitado por um vazio. O traumático, portanto, é constitutivo do sujeito, não é um acidente ou um acontecimento isolado. E não se trata apenas de um sujeito específico: todos somos atravessados por esse vazio, esse buraco em torno do qual se faz um trabalho psíquico de contornar com o simbólico, o imaginário e o real.

O que queremos dizer é que o traumático não pertence apenas às vítimas de violência. A circunstância violenta que essas pessoas vivem não exige que o sujeito se implique com essa violência do outro, mas sim com o próprio trabalho psíquico. Não se trata de dizer que a vítima tem que se implicar com a violência que sofreu. Se alguém foi torturado, não é ele quem deve se implicar com essa violência, e sim o torturador.


Um adolescente pode ouvir: "Ah, então você tem que ir para a escola, senão não tem responsabilidade". Mas responsabilidade em relação a quê? Quando um sujeito se engaja em uma lei, há uma diferença entre a lei simbólica, imaginária, e a lei de um dado tempo histórico. Existe a diferença entre a lei da cidade e a lei do desejo. A lei não está simplesmente posta. O ponto é entender se a implicação desse sujeito é com sua situação específica ou se é um basta a esse gozo imposto a ele. E a partir disso, construir um outro discurso, que de fato tenha uma dimensão política. A articulação com o político é fundamental, pois é ela que permite localizar o sujeito não apenas como alguém vivendo um conflito intrapsíquico, mas como alguém inserido em um jogo de forças de poder. A questão da implicação e da responsabilização que a gente vai trabalhando nesse par é essencial. Se ele começa a entender que o que está em jogo ali não é uma culpa, nem uma falha dele, mas sim uma estrutura que o coloca naquela posição, então esse conceito de implicação pode ser usada de uma forma ideológica.


É fundamental refletirmos: o que queremos que o sujeito se implique? Isso tem a ver com sua trajetória singular ou apenas com um compromisso de uma sociedade que, na prática, não se importa com ele e o coloca no lugar de dejeto? Precisamos fazer uma reflexão muito apurada da diferença desses lugares.

O trabalho psíquico é fundamental porque esse mesmo menino que, para sobreviver, "botava banca de bandido", quanto mais perigoso o outro acha que ele é mais ele esta protegido de não ser atacado, mas pela identificação ele começou a acreditar nisso. Ele acabava sendo manipulado: sempre que havia uma briga, ele dizia "você tem medo de mim". Mas, na verdade, quem tinha medo era ele. Por mais que se apresentasse como valentão e perigoso, o que ele expressava era o medo. E quanto mais ele se identificava com esse lugar, mais entrava em brigas. Se ele consegue separar o que é semblante para o outro e não acreditar nessa posição, ele pode fingir sem se perder e escapar dessas armadilhas da identificação.


Agamben, em "O que resta de Auschwitz", fala sobre a importância do trabalho psíquico. Fingir que não se sofre pode ser uma estratégia psíquica de sobrevivência. A aposta ética aqui é a de que nenhum governo pode capturar um sujeito por completo. Mesmo que pareça que alguém está completamente alienado, dominado, reduzido a lixo ou lama, é preciso lembrar da pulsação inconsciente. Precisamos estar atentos ao momento em que ela se manifesta. O desejo do analista é sustentar esse lugar e apostar que, em algum momento, essa pulsação irá se sustentar. Provocando com a própria presença, estando lá, é uma coisa que se faz muito, e sem fazer nada.


Não há contradição entre essa aposta e o fato de que o sujeito foi objetivamente vítima de acontecimentos violentos. O problema é quando a fascinação pelo acontecimento coloca o sujeito na posição subjetiva de vítima. A posição subjetiva de vítima é diferente da posição objetiva de que eles foram vitimas do acontecimento. Quando o sujeito se coloca subjetivamente como vítima, ele não se torna um sujeito político. Em vez disso, fica preso ao ressentimento e à reivindicação de um outro poder totalitário que lute por ele. Isso gera uma demanda infinita. O verdadeiro desafio não é restituir o que foi perdido – pois nada pode restituir o que era antes – mas sim transformar essa experiência em um caminho para que isso não aconteça com outras pessoas. Se não houver essa transição, o sujeito fica preso à lógica da vingança e não dá andamento a uma nova vida.

Essa separação entre uma posição vitimizada e uma posição que dá continuidade à vida é o que garante força para a luta política.


Outro ponto crucial é o curto prazo. A intervenção desse tipo precisa deixar algo no lugar, para que, no momento da saída, não pareça que nada ficou. Quem são as pessoas que estão ali e que sabem como conduzir os processos? É fundamental dar a elas a direção política. Para que a continuidade seja garantida, é necessário que essas pessoas possam se organizar, criar associações e liderar os processos a partir do que já existe ali. Os líderes políticos locais, os recursos já presentes naquele espaço – que muitas vezes estão apagados pela violência e pelas condições impostas – precisam ser reconhecidos. Cada sujeito ali tinha uma profissão e um lugar no campo social. É necessário renomear esses papéis para que esse processo continue com as próprias pessoas que vivem ali.

Isso também se conecta com a questão dos registros. O que deve ganhar visibilidade? Quem realizará esses registros? Como essas pessoas querem ser retratadas? Quem será exposto e de que forma? Isso é fundamental, pois é um processo de identidade. O objetivo do registro precisa ser claro: para quem ele serve? O ideal é que as próprias pessoas realizem seus registros, decidam como querem ser representadas e tenham agência sobre sua própria narrativa.



Território: relação subjetiva com o lugar e com os laços que ali se fazem.



A ideia do desamparo discursivo articula muito bem o campo subjetivo e político. Trata-se de um avanço como formulação teórica, nesse entrecruzamento de campos, como se a clínica não estivesse no território da política. Se oferecemos uma condição discursiva para alguém, esse é um ato político necessariamente. O fato de alguém poder se dizer e se fazer ocupando um espaço na cidade é, em si, uma resposta política.

A escuta pode amparar esse processo. Escutar e tratar podem construir elementos para que o sujeito se ampare discursivamente, mas isso inclui a perspectiva de que a escuta é, sempre, uma ação política. Um sujeito que escuta é, necessariamente, tensionado para fora da sua condição de vítima, pois ele é alguém que fala, que se posiciona e cria.


A escuta deve ser coletiva, mas sem perder de vista as perspectivas do sujeito. É preciso escutar também as resistências. Existe um modo próprio das pessoas que viveram essas experiências e que estão vivas. Há um processo já em andamento, e a escuta deve reconhecê-lo. Não se trata de imaginar que a elaboração só começa depois que um psicanalista chega ao território.

A todo momento, é necessário lembrar que, quando um sujeito foge de uma guerra, ele faz uma decisão vital: embarcar em um navio ou sair correndo, por exemplo. Quando ele se depara com as consequências dessa escolha, o peso da culpa e da vergonha podem cair sobre ele. Há a chamada "vergonha do sobrevivente", o peso de ter realizado um ato de vida (uma escolha pela vida, ela cai sobre o sujeito) enquanto outras pessoas, como irmãs ou amigos, foram mortos. A escuta deve auxiliar o sujeito a sustentar a vida que já está em andamento e permitir deslocamentos que favoreçam esse processo.

A escuta também está relacionada a lidar com a angústia e a criar laços com o outro. O sujeito precisa ser reconhecido, ter sua dignidade reafirmada. Toda escolha envolve uma perda: "a bolsa ou a vida". Viver é perder. Poder bancar essas escolhas já feitas é o que permite ao sujeito realizar as separações necessárias.


Tão fundamental quanto o leite materno é a voz da mãe. O fundamental para o humano é o laço com o outro, que cifre e de importância ao que ele vive.


Não se trata aqui de uma neurose, mas de uma reação a uma forma de manipulação concreta da vida do sujeito.


Na clínica da neurose, há uma tensão em que a contingência se sobrepõe à fantasia (fantasma?). Em situações de catástrofe e violência, a fantasia desaparece no acontecimento, o sujeito fica sem lugar. O sujeito fica sem espaço, pois o acontecimento é saber e verdade juntos. Ele se vê totalmente paralisado, pois algo externo e incontrolável o atravessa. O primeiro passo é aceitar o acontecimento. Depois, reconhecer que esse evento o abalou de uma maneira singular.


Por isso, não se deve usar o termo "traumático", mas sim "desamparo".



Justamente por essa despolitização que leva ao uso do termo "traumático" como uma forma de redução do sofrimento à esfera individual, quando, na verdade, trata-se de um processo coletivo e político. O apagamento discursivo é um mecanismo de manipulação, e restaurar uma posição para o sujeito significa combater esse silenciamento político.

 
 
 

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