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Desamparo Discursivo

  • thyenelivramento
  • 29 de jan.
  • 4 min de leitura

Fotografia de Bahareh Bisheh @bahareh_bisheh



Uma das dificuldades na escrita da clínica são os entrecruzamentos teóricos que, por vezes, parecem não ter saída. Tive a alegria de encontrar os escritos de Miriam Debieux, que têm me ajudado a construir caminhos entre “criança” e “constituição subjetiva”. Enquanto a noção de “criança” remete ao fora (as múltiplas nomeações e cenários possíveis ao nomeá-la), a “constituição subjetiva” refere-se ao dentro (aquilo que foi feito a esse corpo e como ele respondeu a isso).

Buscando costurar essas dimensões sem separá-las rigidamente – tal como propõe a práxis psicanalítica –, Miriam resgata e desenvolve o conceito de “desamparo discursivo”, inicialmente proposto por Mario Pujó. Esse conceito me parece ser um ponto-chave para abrir novas possibilidades de articulação entre o "eu" (criança) da história e o sujeito do inconsciente.



Essa articulação teórica se encontra nos seguintes textos:


Mario Pujó (2000) Trauma y desamparo. In: Revista Psicoanálisis y el hospital: Clínica del Desamparo: https://psicanalisepolitica.wordpress.com/wp-content/uploads/2017/11/pujc3b3_trauma_y_desamparo.pdf


Miriam Debieux Rosa (2016) A clínica em face da dimensão sócio-política do sofrimento. Psicanálise, política e cultura. 1. ed. São Paulo: Escuta.


Aqui está um trecho do livro para futuras reflexões e elaborações:


p.46-48


“No que tange à teoria, à clínica e à ética, esse posicionamento nasce dos atendimentos e das supervisões de atendimentos clínicos de famílias em situação de miserabilidade que realizamos ao longo de nossa trajetória, assim como dos atendimentos feitos diretamente com adolescentes considerados perigosos, internados na então chamada Febem, foco de inúmeras rebeliões de adolescentes, assim como de denúncias de tortura e maus-tratos da instituição. Os adolescentes, malgrado os acordos que eram feitos com a instituição, chegavam para os atendimentos na Clínica Psicológica algumas vezes algemados, produzindo deploráveis cenas de humilhação. Por não haver bibliografia nem experiência relatada sobre o tema à época e levando em conta o contexto da situação encontrado, consideramos que seria prematuro envolver alunos em formação nos atendimentos.


Se relacionarmos a ideia de desamparo social com a de desamparo discursivo, obtemos uma noção fértil tanto para a articulação entre constituição subjetiva e discurso social quanto para alertar sobre a resistência do analista à escuta de pessoas de outro grupo social e/ou cultural.


No contraponto do clamor do discurso social, como o das classes médias que desconsideram os maus-tratos, incitam mais repressão e temem, angustiadas, os jovens, pudemos escutar esses jovens apoiados na noção de desamparo discursivo que, no entender de Mário Pujó, é caracterizado pela fragilização das estruturas discursivas que suportam o vínculo social, no que rege a circulação dos valores, ideais, tradições de uma cultura e resguardam o sujeito do real.


Desamparo [Hilflosigkeit], em Freud, está presente na segunda teoria da angústia, na "Conferência XXXII, Angústia e vida pulsional" (1932-1933), onde se articula com a angústia e com a dimensão do traumático. O conceito trata da experiência estruturante do sujeito, relacionada à falta de amparo, referida primeiramente aos primórdios da existência humana. O bebê por sua imaturidade orgânica e psíquica é inteiramente dependente dos cuidados de outrem e incapaz de sobreviver sozinho, o que ocasiona a entrada do sujeito na linguagem pela via do desejo do Outro. Na sua constituição, o sujeito tece bordas em torno do real, tecidas a partir do desejo do Outro e da transmissão da cultura pela via da linguagem.

Bordas que protegem da angústia e do trauma. Mas a marca do desamparo está sempre presente remetendo à dimensão trágica da existência, ao vazio estrutural que habita o sujeito, ao real de sua falta-a-ser e se evidencia quando são retiradas as coordenadas simbólicas que sustentam o sujeito. A dimensão traumática em Freud refere-se àquela experimentada como um excesso de tensão vindo do exterior, aliado a uma falta de recurso do sujeito para responder a tal excesso.


O conceito de desamparo discursivo é retomado para articular o sujeito a modalidades de discurso social e político que promovem o seu desamparo. Quando há desqualificação de seu discurso, soma-se ao desamparo social do sujeito, o desamparo discursivo, ou seja, ele é inteiramente culpabilizado por sua condição social plurideterminada. Sem endereçamento possível ao Outro, o sujeito silencia, sendo lançado ao não senso e à dificuldade de reconhecer, ele mesmo, seu sofrimento, sua verdade, seu lugar no laço social e no discurso. Essa condição desarticula o sujeito de sua ficção fantasmática, afeta seu narcisismo e o remete à angústia ante o desamparo que perpetua a condição traumática.

Esse jogo discursivo expõe o sujeito ao risco de confrontação com o traumático — aquilo que está fora de sentido. A irrupção do traumático é tomada aqui como a desorganização subjetiva decorrente da emergência daquilo que está fora do sentido e da significação.


A exposição traumática é dupla: por um lado, a constante exposição a situações de violência; por outro, os recursos necessários à elaboração do trauma encontram-se diminuídos, promovendo efeitos de desubjetivação. É o caso, por exemplo, do que ocorre com os "meninos de rua", assim chamados por não terem a proteção do discurso familiar. Dentre os diversos aspectos que os caracterizam, esses meninos têm em comum o fato de terem de contar com o próprio discurso para sobreviver no espaço da rua. Ou seja, aliam-se aos inúmeros tipos de desamparo a falta de um lugar no ideal social e a perda de um discurso de pertinência para essas crianças.


Outro ponto que se revelou fundamental para a prática psicanalítica nesse contexto é a resistência à escuta do psicanalista. Mais importante ou tão importante quanto à dimensão de cada sujeito, nossa hipótese forte é que há no analista uma resistência de classe social na escuta clínica desses sujeitos. Ou seja, o psicanalista está implicado nas normativas e nos interesses de classe de seu grupo social, o que pode ser impeditivo da escuta clínica. Consideramos que a resistência do analista é o principal entrave à escuta clínica nestes contextos."



 
 
 

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