Tive contato com a escrita da psicanálise em território a partir do trabalho de Jorge Broide, do qual realiza escuta psicanalítica nos mais variados cenários: nas ruas, Instituições, becos, vielas, ruelas… em suas palavras “onde quer que a vida se dê”, e para isso é necessário criar dispositivos de trabalho. Uma dessas criações ele deu o nome de “crônica psicanalítica” que irei discorrer ao longo do texto.
Estive nessa função, quando realizei o trabalho junto a outros psicanalistas, com a população em situação de rua. E uma das particularidades de nosso trabalho nos territórios, é o psicanalista criar crônicas a partir dos efeitos transferênciais de sua escuta em território, o que seria isso?
Antes de adentrarmos nesse terreno novo, vamos transitar no que seria a crônica para a literatura. Ela representa um gênero literário que está por aí, na boca da rua, aquela coisa cotidiana, aquilo que se passa e por vezes não notamos. Coutinho no livro “notas da teoria literária” pontua que a crônica “revela a experiência humana ante o impacto da vida”. A crônica é algo muito singular e ao mesmo tempo coletivo.
A direção do trabalho analítico é respaldada no tempo lógico, diferentemente da etimologia da palavra crônica, que faz alusão ao khronos - tempo. Historicamente a crônica era o instrumento para registar os acontecimentos em ordem cronológica. E talvez aqui esteja a diferença de um psicanalista cronista do qual não se atenta aos acontecimentos da realidade, ele está amparado pelo Real, pelo tempo lógico, pelas transferências e seus efeitos. Por vezes na crônica direcionamos uma fala a um psicanalista que não necessariamente foi ele quem disse, mas de alguma maneira foi assim que o cronista escutou aquela intervenção, como se ele tivesse dito, ficando então no campo da ficção - verdade.
A crônica nada mais é do que a escrita a respeito de uma história clínica, seria a carne da clínica, traduzindo a cena encarnada. Desvela a cena estando dentro dela, convoca o cronista a imaginar, o que suscita na transferência dele, no corpo dele, e compartilha. Por não intervir diretamente no grupo, possibilita com que testemunhe “por outras vias as manifestações dos não-ditos, dos sintomas, da transferência, das resistências e dos fantasmas inconscientes presentes no grupo” (CARRO, 2016, p.21). E a crônica psicanalítica, ganha voz e é escutada pelos psicanalistas a posteriori da intervenção grupal.
Além de um registro da escuta, as crônicas direcionam o trabalho em campo, na medida em que é a escuta da escuta, ou seja, a presença do cronista é a falta em cena, aquela falta que não fala, por vezes escreve, anota, se deixa levar pelo o que é feito ali. Se deixa sentir, sentir os cheiros, os incômodos, os respiros e suspiros.
Compreendendo que a crônica é um dispositivo de escuta e intervenção dentro de processos grupais psicanalíticos, percebe-se que:
ela instaura a escuta clínica nos grupos como aporte metodológico que entrelaça a escuta à escrita, colocando em relevo a palavra. O cronista tem a tarefa de escrever de maneira absolutamente livre o que ocorre no dispositivo grupal, através de uma narrativa pautada por sua própria transferência. (BROIDE; BROIDE, 2015, p. 54).
Assim, percebo que o lugar do cronista ocupado por um psicanalista é um lugar possível diante do impossível, que é transmitir o que se passa ali. Uma tentativa falha de apropriação de algo irrepresentável, entretanto por outro lado é a possibilidade de criar memórias que historicamente são invisibilizadas. O lugar que está fora mas dentro, escuta que transpassa os lugares ali colocados. Como uma testemunha das intervenções, corte e manejos transferênciais e que transforma a sua escuta em escrita.
A crônica psicanalítica como a potência da sutileza, dos miúdos, dos suspiros, dando voz à intimidade da transferência, deixando fluir a “cadeia significante entre os dedos em direção ao papel” (MIRANDA et al, 2006, p. 4). Sendo a “escuta inscrita em escrita do inconsciente”, uma maneira de transmissão da psicanálise tanto pela escrita do texto, como pela via da leitura e releitura aos psicanalistas à novas escutas diante das palavras escritas.
REFERÊNCIAS
BROIDE, Jorge. e BROIDE, Emília Estivalet. A psicanálise em situações sociais críticas: metodologia clínica e intervenções. São Paulo: Escuta, 2015.
CARRO, Barbara Merigue. A crônica enquanto via de transmissão: a psicanálise perto de nós. 2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia) - Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2016.
COUTINHO, Afrânio. Notas de teoria literária. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.
FREUD, Sigmund. Escritores criativos e Devaneios (1908 [1907]). In: “Gradiva” de Jensen
e outros trabalhos. Edição Standart Brasileira das Obras Completas. Rio de Janeiro: Imago, l976. Vol. IX.
MIRANDA, A. B. de et al. Cronista: um lugar em construção – a escuta inscrita e escrita em uma função. Correio APPOA, Porto Alegre, 2006.
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